Divisão Literária ao Longo da História
O futebol tem alguns confrontos de dimensões épicas. O mais célebre ou tradicional se dá entre dois times cariocas, Flamengo e Fluminense. A rivalidade é tão transcendente que Nelson Rodrigues chegou a dizer que o Fla-Flu antecede o Big Bang. Pois na literatura também existe esse tipo de embate. Ele envolve escritores que, contemporâneos um do outro, acabaram por simbolizar caminhos culturais alternativos. Nesse jogo, o resultado depende, em boa medida, daquilo que fazem os torcedores. Leitores comuns, críticos literários e outros artistas interpretam e reinterpretam as obras dos grandes autores, submetem-se à sua influência ou a rejeitam, e refletem sobre suas biografias. Tudo isso é importante. Afinal, cada escritor tem méritos objetivos, mas outras coisas mudam com o tempo, como sua popularidade e a atualidade de suas ideias. O placar dos mais acirrados Fla-Flus literários encontra-se neste artigo.
As obras de Leon Tolstoi (1828-1910) e Fiodor Dostoievski (1821-1881) são momentos culminantes da arte do romance. Há mais de 100 anos, críticos e escritores têm se dividido entre os dois gigantes. O russo exilado nos Estados Unidos Vladimir Nabokov detestava Dostoievski. Para ele, o autor de Crime e Castigo tinha um estilo "desleixado". Já outro famoso dissidente da antiga União Soviética, o poeta Joseph Brodsky, lamentava que Dostoievski não tivesse deixado herdeiros na literatura russa do século XX: para ele, o realismo de Tolstoi acabara por servir de modelo para toda a mesquinha literatura oficial socialista. É um empate titânico. Como disse o escritor inglês E.M. Forster, Tolstoi era insuperável no retrato da vida, tanto nos seus aspectos domésticos (como no adultério de Anna Karenina) quanto nos heroicos (no painel histórico de Guerra e Paz). Dostoievski, de seu lado, também seria insuperável, mas como psicólogo e analista moral – um "explorador da alma".
A maior disputa entre romancistas de língua portuguesa tem um componente bairrista, opondo o português Eça de Queiroz (1845-1900) ao brasileiro Machado de Assis (1839-1908). Machado, aliás, escreveu uma resenha devastadora de O Primo Basílio, reprovando a "reprodução fotográfica e servil" da realidade que Eça teria herdado do francês Émile Zola. O texto é injusto com aquele que é o maior romance de adultério de Portugal: Machado parece interessado em firmar um ponto programático ao negar validade à escola literária do realismo. O episódio revela um viés puritano em Machado, que não apreciava o erotismo do colega. Mas também ilustra a vantagem que o brasileiro leva sobre o português: militante do realismo, Eça ficou ligado ao espírito do século XIX, enquanto Machado, autor de romances pouco ortodoxos como Memórias Póstumas de Brás Cubas, é uma influência viva para a literatura atual (ainda que certa vertente da crítica insista em defini-lo como mero imitador "colonial" do metropolitano Eça).
Ao que parece, Eça não guardou rancor contra Machado, a quem constituiria como representante de seus direitos autorais no Brasil. Outros embates envolveram escritores que de fato brigaram um com o outro (embora a briga em si não seja suficiente para criar um legítimo Fla-Flu: os leitores não se dividem entre Mario Vargas Llosa e seu desafeto Gabriel García Márquez). Na França do pós-guerra, a grande queda-de-braço foi entre Jean-Paul Sartre e Albert Camus. Os dois romperam depois que a revista Les Temps Modernes, de Sartre, publicou uma resenha negativa de O Homem Revoltado, de Camus. A divergência também tinha razões políticas: o marxista Sartre fechava os olhos para as atrocidades cometidas na União Soviética. Camus recusava-se a ser cúmplice desse silêncio criminoso. Os dois filósofos existencialistas fixaram imagens opostas do intelectual público: Sartre deixava-se cegar pelo empenho ideológico, enquanto Camus era um humanista, preocupado com a moralidade de suas ações.
No Brasil, o arranca-rabo não foi tão grandioso. Companheiros da Semana de Arte Moderna de 1922, Mário (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954) se afastariam mais tarde por razões não muito claras (Oswald era dado a rompimentos intempestivos). Há um perfil distinto para as duas torcidas: Mário é reputado nos meios acadêmicos (mais especificamente, na Universidade de São Paulo) como uma espécie de teórico da arte brasileira; Oswald é idolatrado por poetas e artistas de vanguarda como o criador da antropofagia. O entusiasmo das torcidas quase faz esquecer que esse é um joguinho de várzea – nenhum dos Andrades deixou obra de peso.
A grande disputa da poesia brasileira se encontra nas gerações seguintes, entre Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Drummond deixou uma obra incontornável como sua famosa pedra: ainda hoje, é o poeta moderno fundamental do Brasil. Foi um dos maiores cultores do verso livre em português e também fez poemas estupendos em formas fixas como o soneto. Seus livros, porém, sempre foram irregulares. Até em obras-primas como A Rosa do Povo há poemas intragáveis, como o engajado Carta a Stalingrado. Ele foi ficando pior em seus últimos anos: é preciso esforço para achar um poema que preste em obras tardias como Amar Se Aprende Amando. Mais contido, João Cabral não alcança todos os tons emocionais de Drummond. Em compensação, ele é dono de uma dicção impecável, com um "controle de qualidade" que raros poetas mantêm. Cabral, em suma, é melhor – mas Drummond é maior.
Em língua inglesa, a grande peleja poética do século XX se deu entre os americanos Ezra Pound (1885-1972) e T.S. Eliot (1888-1965), este um britânico de adoção. Pound começou o jogo em vantagem: foi uma presença constante no campo cultural nas primeiras décadas do século, incentivando e influenciando gente como W.B. Yeats, James Joyce e o próprio Eliot (que o chamou de il miglior fabbro, "o melhor artífice", expressão tirada de Dante). Mas Eliot acabaria exercendo uma influência maior, especialmente sobre a escola conhecida como "Nova Crítica", que dominou as universidades americanas por décadas. E, como poeta, o craque é mesmo Eliot: seu A Terra Devastada (que, ironicamente, foi revisado por Pound) é o poema-símbolo do século XX. Mas a partida nunca se encerra. Sucessivas gerações de torcedores – críticos, poetas, leitores – estão sempre revisando os resultados e às vezes apostam em um azarão. O crítico Harold Bloom, por exemplo, não se conforma com a dominância da dupla Eliot-Pound no século XX. Prefere dar a taça a um terceiro poeta americano, Wallace Stevens.
As obras de Leon Tolstoi (1828-1910) e Fiodor Dostoievski (1821-1881) são momentos culminantes da arte do romance. Há mais de 100 anos, críticos e escritores têm se dividido entre os dois gigantes. O russo exilado nos Estados Unidos Vladimir Nabokov detestava Dostoievski. Para ele, o autor de Crime e Castigo tinha um estilo "desleixado". Já outro famoso dissidente da antiga União Soviética, o poeta Joseph Brodsky, lamentava que Dostoievski não tivesse deixado herdeiros na literatura russa do século XX: para ele, o realismo de Tolstoi acabara por servir de modelo para toda a mesquinha literatura oficial socialista. É um empate titânico. Como disse o escritor inglês E.M. Forster, Tolstoi era insuperável no retrato da vida, tanto nos seus aspectos domésticos (como no adultério de Anna Karenina) quanto nos heroicos (no painel histórico de Guerra e Paz). Dostoievski, de seu lado, também seria insuperável, mas como psicólogo e analista moral – um "explorador da alma".
A maior disputa entre romancistas de língua portuguesa tem um componente bairrista, opondo o português Eça de Queiroz (1845-1900) ao brasileiro Machado de Assis (1839-1908). Machado, aliás, escreveu uma resenha devastadora de O Primo Basílio, reprovando a "reprodução fotográfica e servil" da realidade que Eça teria herdado do francês Émile Zola. O texto é injusto com aquele que é o maior romance de adultério de Portugal: Machado parece interessado em firmar um ponto programático ao negar validade à escola literária do realismo. O episódio revela um viés puritano em Machado, que não apreciava o erotismo do colega. Mas também ilustra a vantagem que o brasileiro leva sobre o português: militante do realismo, Eça ficou ligado ao espírito do século XIX, enquanto Machado, autor de romances pouco ortodoxos como Memórias Póstumas de Brás Cubas, é uma influência viva para a literatura atual (ainda que certa vertente da crítica insista em defini-lo como mero imitador "colonial" do metropolitano Eça).
Ao que parece, Eça não guardou rancor contra Machado, a quem constituiria como representante de seus direitos autorais no Brasil. Outros embates envolveram escritores que de fato brigaram um com o outro (embora a briga em si não seja suficiente para criar um legítimo Fla-Flu: os leitores não se dividem entre Mario Vargas Llosa e seu desafeto Gabriel García Márquez). Na França do pós-guerra, a grande queda-de-braço foi entre Jean-Paul Sartre e Albert Camus. Os dois romperam depois que a revista Les Temps Modernes, de Sartre, publicou uma resenha negativa de O Homem Revoltado, de Camus. A divergência também tinha razões políticas: o marxista Sartre fechava os olhos para as atrocidades cometidas na União Soviética. Camus recusava-se a ser cúmplice desse silêncio criminoso. Os dois filósofos existencialistas fixaram imagens opostas do intelectual público: Sartre deixava-se cegar pelo empenho ideológico, enquanto Camus era um humanista, preocupado com a moralidade de suas ações.
No Brasil, o arranca-rabo não foi tão grandioso. Companheiros da Semana de Arte Moderna de 1922, Mário (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954) se afastariam mais tarde por razões não muito claras (Oswald era dado a rompimentos intempestivos). Há um perfil distinto para as duas torcidas: Mário é reputado nos meios acadêmicos (mais especificamente, na Universidade de São Paulo) como uma espécie de teórico da arte brasileira; Oswald é idolatrado por poetas e artistas de vanguarda como o criador da antropofagia. O entusiasmo das torcidas quase faz esquecer que esse é um joguinho de várzea – nenhum dos Andrades deixou obra de peso.
A grande disputa da poesia brasileira se encontra nas gerações seguintes, entre Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Drummond deixou uma obra incontornável como sua famosa pedra: ainda hoje, é o poeta moderno fundamental do Brasil. Foi um dos maiores cultores do verso livre em português e também fez poemas estupendos em formas fixas como o soneto. Seus livros, porém, sempre foram irregulares. Até em obras-primas como A Rosa do Povo há poemas intragáveis, como o engajado Carta a Stalingrado. Ele foi ficando pior em seus últimos anos: é preciso esforço para achar um poema que preste em obras tardias como Amar Se Aprende Amando. Mais contido, João Cabral não alcança todos os tons emocionais de Drummond. Em compensação, ele é dono de uma dicção impecável, com um "controle de qualidade" que raros poetas mantêm. Cabral, em suma, é melhor – mas Drummond é maior.
Em língua inglesa, a grande peleja poética do século XX se deu entre os americanos Ezra Pound (1885-1972) e T.S. Eliot (1888-1965), este um britânico de adoção. Pound começou o jogo em vantagem: foi uma presença constante no campo cultural nas primeiras décadas do século, incentivando e influenciando gente como W.B. Yeats, James Joyce e o próprio Eliot (que o chamou de il miglior fabbro, "o melhor artífice", expressão tirada de Dante). Mas Eliot acabaria exercendo uma influência maior, especialmente sobre a escola conhecida como "Nova Crítica", que dominou as universidades americanas por décadas. E, como poeta, o craque é mesmo Eliot: seu A Terra Devastada (que, ironicamente, foi revisado por Pound) é o poema-símbolo do século XX. Mas a partida nunca se encerra. Sucessivas gerações de torcedores – críticos, poetas, leitores – estão sempre revisando os resultados e às vezes apostam em um azarão. O crítico Harold Bloom, por exemplo, não se conforma com a dominância da dupla Eliot-Pound no século XX. Prefere dar a taça a um terceiro poeta americano, Wallace Stevens.