China | Da Miséria à Potência Mundial
Partindo de um patamar de miséria há apenas 25 anos, eles conseguiram crescer à média de 9,9% nos anos 80, 10,3% nos anos 90 e, agora, perto de 9% a partir de 2000. A China sempre foi um país com uma aristocracia refinada, cercada por uma multidão paupérrima. Hoje, os chineses das metrópoles compram em feiras fartas, frequentam supermercados de padrão ocidental e podem desfilar diante das vitrines de alguns dos maiores e mais ricos shopping centers do mundo. A China é doze vezes mais rica hoje do que 25 anos atrás. Sua economia equivale à soma das existentes no Brasil, no México e na Rússia. Xangai, a maior cidade do país, concentra 20% da construção civil do mundo. Por tudo isso, a entrada da força de trabalho chinesa no capitalismo global será uma bomba com potência para produzir efeitos durante cinquenta anos. Estima-se que haverá meio bilhão de adultos para ser despejados na produção global a um custo muito baixo.
O panorama de uma grande cidade chinesa é desconcertante. Feiras de quinquilharias se estendem ao lado de shoppings com as mais admiradas grifes internacionais. Carros como Mercedes-Benz, BMW e Audi, todos fabricados lá mesmo, disputam o espaço nas ruas com bicicletas, Vespas e os últimos riquixás que serão vistos no mundo. A uma centena de metros de cortiços, elevam-se alguns dos mais altos edifícios do mundo, com arrojada arquitetura pós-moderna.
Alguns restaurantes servem cobras fritas, tiradas vivas de um serpentário à vista do cliente. Nas feiras populares, roedores são exibidos junto de sapinhos. São "requintes" da culinária local. Metros adiante, o visitante verá cafés Starbucks, lojas do McDonald's, Pizza Hut e casas da rede americana de frango frito KFC. Os aeroportos estão todos cheios de chineses tomando Jumbos para viagens internas. Ao mesmo tempo, lojas de Hong Kong apresentam na vitrine os órgãos sexuais de veados, secos e delicadamente embalados em celofane. Não entendi como se usam pênis e testículos secos de veados, se raspados na comida ou em forma de chá. Mas é fácil perceber que são afrodisíacos muito apreciados.
A China é uma velha senhora, uma das mais antigas civilizações do mundo. Os primeiros objetos de cerâmica fabricados na região têm 5 000 anos. A linhagem inaugural de imperadores, da dinastia Zhou, antecede em 1 000 anos a fundação do cristianismo. A Cidade Proibida, o antigo palácio dos imperadores em Pequim, foi construída um século antes das viagens de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral. Depois de um longo sono, que começou no fim da Idade Média, a China vem despertando desde os anos 80.
Sou um veterano do Oriente. Estive três vezes no Japão, visitei a Índia, o Nepal, Cingapura, Taiwan. Nenhum desses países me impressionou tanto quanto a China, onde estive três vezes. Em 1991, conheci Hong Kong. Dez anos atrás, fui perambular durante um mês pelas metrópoles da franja do Pacífico, que concentram mais de 70% dos chineses. Ali estão instaladas centenas de Zonas Econômicas Especiais, onde se multiplicam multinacionais japonesas, europeias e americanas, algumas das quais visitei. Estive agora mais um mês na China e vi outro país, que não existia em 1995. Só sentirá o alcance real da máquina de crescimento chinesa quem puder comparar o panorama de hoje com o de épocas passadas.
A riqueza da China não é dessas de que a pessoa só toma conhecimento lendo estudos de economistas. Na China, a riqueza é um fenômeno físico, visível a olho nu, desde que o observador saiba o que estava ali antes. A China iniciou sua modernização em 1980, depois de trinta anos de aplicação de um estilo extremado de comunismo, que tinha chavões marxistas-leninistas de um lado e racionamento de gêneros alimentícios do outro. O trabalho físico era realizado com instrumentos medievais. As árvores eram consideradas simples combustível e os jardins, nada mais do que caprichos burgueses. O comunismo produziu um desastre econômico e ecológico na China. Hoje, Pequim é um jardim, com árvores novas espalhadas por todas as avenidas. As vias elevadas abrem-se em forma de pétalas. A cidade tem dez hotéis cinco-estrelas, do melhor gabarito internacional, equipados com restaurantes luxuosos e culinária impecável do Ocidente. Está construindo mais doze cinco-estrelas para as Olimpíadas de 2008. As calçadas são amplas como as dos Champs-Élysées, em Paris. E tão limpas como as de Tóquio. Nas periferias enfileiram-se conjuntos de prédios de quarenta, cinquenta andares com apartamentos pequenos para a massa trabalhadora. Na rua, as pessoas se vestem com roupas mais simples do que na Europa, mas já são trajes modernos e, grande novidade, coloridos.
Veja agora a Pequim de 1980, com base na descrição do jornalista italiano Fernando Mezzetti, que estava por lá como correspondente de imprensa e escreveu um livro, De Mao a Deng, sobre sua experiência. A capital era uma aldeia de gente camponesa. Todos escarravam no chão. Não se viam saias nem vestidos, todos usavam túnicas Mao, cinzentas. O único prédio alto da cidade era o hotel estatal Pequim, de dezessete andares. Havia feios edifícios baixos para as repartições públicas. O resto, quase a totalidade da capital, era composto de hutongs, vielas com casas escuras de um andar, quartos sem janelas e enormes privadas coletivas que não eram servidas por esgoto. Uma ou duas vezes por semana, passava um caminhão da prefeitura para recolher as fezes, que iam virar adubo nas fazendas coletivas. Visitei uma dessas instalações sanitárias em 1991, na área de Hong Kong. Constava de uma bacia de cerâmica com a circunferência de uma banheira de hidromassagem. Umas 100 ou 200 pessoas tinham passado por lá antes do recolhimento dos excrementos.
Nos lugares públicos não havia espelhos porque era considerado burguês cuidar da aparência. Os salões de cabeleireiro tinham sido fechados. Existiam cupons de racionamento e apenas 64 chuveiros públicos para 8 milhões de pessoas em Pequim. Ninguém tinha TV, rádio, telefone nem carro, a não ser funcionários do alto escalão do Partido Comunista Chinês. Abriu-se naquele ano o primeiro restaurante privado de Pequim. Um tonel cheio de brasas funcionava como fogão. Havia somente quatro mesas de cinco lugares para os clientes. O local tornou-se a sensação da capital e logo era preciso fazer reserva com antecedência de semanas. Naquela época, cada lojinha pertencia ao Estado. Hoje, Pequim tem restaurantes aos milhares, salões de beleza, boates, casas de jazz, teatros com concertos de rock, lojas de aparelhos eletrônicos.
Vamos ao maior shopping center de Pequim. Chama-se China World Shopping Mall. Tem lojas da Cartier, Prada, Zegna, Gucci, Hugo Boss, Fendi, Baccarat, Dior, Cerruti, Celine, Dunhill, Ferragamo, Montblanc, Lagerfeld, Paul&Shark, Armani, Givenchy, Moschino, Kenzo e mais cinquenta marcas de roupas e outras 200 lojas de jóias, artigos de couro, itens de beleza, livrarias e restaurantes. Nos três andares inferiores ao térreo dos grandes hotéis, há sempre uma Daslu com todas aquelas marcas famosas (e preços internacionais). Em Hong Kong, os shoppings enfileiram-se em tal quantidade no centro da ilha que é possível passar de um a outro por vias aéreas para pedestres, gastando-se horas e horas na visita, sem pisar na rua.
"Lolex, Lolex." Os vendedores de relógios falsificados estão por toda parte. O Rolex é a marca que anunciam para chamar a atenção dos estrangeiros, mas eles têm exemplares de todas as etiquetas famosas. À porta dos hotéis, vendem Rolex a 5 dólares. É uma falsificação grosseira, da mesma maneira que as bolsas "Luiton", ou Louis Vuitton. Mas há lojas muito bem instaladas com falsificações de primeira linha. Têm catálogos de relógios conhecidos a 50 dólares americanos o exemplar. Uma mala de viagem falsa Louis Vuitton, de acabamento impecável, custa 100 dólares. Uma bolsa da marca Gucci sai por 50 dólares e, à primeira vista, é tão bonita quanto a verdadeira, vendida nos shoppings chiques por 1 800 dólares.
Combina-se na China uma fórmula de abertura econômica com autoritarismo político. Hoje em dia, o regime só é comunista e igualitário na retórica, estimulando a instalação de um capitalismo extremado em certas áreas, com atenção especial para a atração de investimentos estrangeiros. As autoridades chamam esse modelo de "socialismo com características chinesas". Decidiu-se criar uma nova zona econômica especial num bairro cheio de casebres? Nenhum problema. Manda-se o aviso de despejo a todos os moradores do bairro e passam-se os tratores para limpar o terreno. Nas zonas especiais florescem indústrias de automóveis (o país abriga a terceira maior do mundo), fábricas de produtos eletrônicos (a China, com 350 milhões de assinantes, tem a maior quantidade de celulares no planeta), produtores de peças para o setor aeroespacial, computadores, têxteis, calçados. A China chegará, dentro de três anos, a ter 1,8 milhão de jovens financistas e contadores, com menos de sete anos de formados, empatando com os Estados Unidos, segundo cálculo do McKinsey Global Institute, publicado na semana passada pela revista americana BusinessWeek. Há 1,8 milhão de jovens engenheiros no país, contra apenas 600 000 nos EUA, e ambas as nações caminham para ostentar a mesma quantidade de cientistas da área biológica e afins daqui a três anos. Investe-se com volúpia na remessa de jovens talentos para doutorados no exterior. Além das redes públicas de ensino, foram abertas 1 300 universidades privadas a partir dos anos 90.
O homem que está por trás dessa revolucionária mudança no status econômico da China não é normalmente colocado no panteão dos grandes estadistas do século XX, onde deveria estar. Seu nome não é Mao Tsé-tung. Deng Xiaoping é o herói da modernização chinesa. Com pouco mais de 1,50 metro de altura, fumante até perto da morte, aos 92 anos de idade, em 1997, sem nenhum apreço visível por ideologias, mesmo repetindo os mantras socialistas, Deng nunca achou que um regime de liberdade política pudesse manter nos trilhos uma população de mais de 1 bilhão de habitantes. O pânico da anarquia social sempre acompanhou os dirigentes chineses, e Deng não foi exceção. No caso do antecessor Mao Tsé-tung, a repressão se destinava a impor a coletivização no campo e nas cidades, prender os que ousassem discordar do marxismo-leninismo e punir os intelectuais com trabalho braçal só porque eles eram um resquício da burguesia que o comunismo queria extirpar. Deng, ao contrário, pensava em usar o poder como uma barragem contra a sublevação social e a favor da modernização da economia.
Mao é venerado como o fundador da República Popular da China, um símbolo da coesão de uma nação com várias etnias e centenas de dialetos. Mas as lideranças chinesas já admitem há décadas que Mao também produziu desastres econômicos. Em certa época, ordenou que os chineses trocassem toda a sua agricultura de hortaliças, chá e frutas pelo plantio exclusivo de cereais. Mandou também que abandonassem outros afazeres em salas de aula, escritórios e fábricas para produzir aço em miniusinas de fundo de quintal. O objetivo desses projetos era "alcançar a Inglaterra em quinze anos". Mao também despachou os intelectuais, técnicos, cientistas e professores para um período forçado de reeducação nas fazendas coletivas, enquanto todas as escolas do país ficaram fechadas por uma década. Morreram de fome algo como 50, 60 milhões de pessoas nessas aventuras ideológicas do Grande Timoneiro. Hoje, com uma reserva de 700 bilhões de dólares, é a China que financia o gigantesco déficit público americano, comprando títulos dos Estados Unidos.
Mao Tsé-tung morreu em setembro de 1976 e Deng Xiaoping foi devagar limpando o terreno para a aplicação daquilo que era sua idéia de "revolução". A partir de 1980, anunciou reformas das instituições econômicas e políticas da China que levaram o país ao crescimento acelerado. Para as multinacionais que queiram instalar-se na China, o governo reduz os impostos, dá isenções, permite remessa total de lucros para o exterior. A carga tributária é baixa, os juros estão ali por 5% ao ano e a inflação em torno de 1%. As leis trabalhistas, nas zonas especiais, favorecem o empregador.
Apesar de todas as mudanças, a China continua com seu regime autoritário. Deng é o herói da modernização chinesa, mas nunca foi um vovô bonachão. Isso ele demonstrou ao mandar 200 000 homens do Exército encerrar a bala as manifestações populares por democracia que eclodiram em junho de 1989 em Pequim. Esse acontecimento, o massacre da Praça da Paz Celestial, não foi captado em todas as suas dimensões pelo Ocidente. É um divisor de águas na China por reforçar a ideia da modernização econômica dentro de um regime ditatorial.
Mikhail Gorbachev esteve em Pequim nesse período. Primeiro líder soviético a visitar a China em trinta anos, abrindo a chance de os dois países normalizarem suas relações diplomáticas, Gorbachev teve barrado seu deslocamento do aeroporto até a Praça da Paz Celestial, onde receberia homenagens. Pequim estava paralisada de lado a lado por 1 milhão de manifestantes, numa cidade de 12 milhões de habitantes. Gorbachev entrou na Assembleia do Povo por uma entrada de serviço lateral e não pôde visitar a Cidade Proibida, no outro lado da praça. A população levantou barricadas com ônibus incendiados, pneus e blocos de cimento, para dificultar o avanço das tropas. À meia-noite do dia 4 de junho, o Exército Vermelho atacou. Não se sabe quantas pessoas morreram. Centenas, talvez milhares. Deng reapareceu depois do massacre para dizer candidamente que, se houve algo errado, foi não se ter levado mais longe e mais rápido a política de abertura econômica. Na China, as coisas são assim. Deng nunca ocupou formalmente o posto de líder máximo. A partir de certa idade, renunciou aos cargos de terceiro escalão que tinha e foi para os bastidores. Continuou mandando. Suas duas frases mais citadas tratam de ideologia (contra) e de riqueza (a favor). Elas dão uma boa ideia do que era sua mente. Sobre ideologia: "Não importa se o gato é preto ou é branco, desde que cace ratos". Sobre a riqueza: "Ser rico é glorioso".
Há quem considere o crescimento chinês uma bolha que pode estourar. Se a China produzir um retrocesso na cuidadosa abertura política que está em marcha, o país perde a chance de continuar se modernizando. Se deixa a modernização prosseguir no ritmo atual, corre o risco de perder o controle político da situação. Há ainda as diferenças entre o padrão de vida das metrópoles e o do campo, que teria remetido uma massa de 200 milhões de desempregados para as cidades. Os bancos oficiais têm um rombo superior a meio bilhão de dólares. Tudo isso é verdade. Mas, quando fui à China em 1995, diziam-se as mesmas coisas. As profecias pessimistas não se concretizaram. As otimistas foram inteiramente superadas pelo dragão. Ele foi muito mais longe do que se esperava.
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O panorama de uma grande cidade chinesa é desconcertante. Feiras de quinquilharias se estendem ao lado de shoppings com as mais admiradas grifes internacionais. Carros como Mercedes-Benz, BMW e Audi, todos fabricados lá mesmo, disputam o espaço nas ruas com bicicletas, Vespas e os últimos riquixás que serão vistos no mundo. A uma centena de metros de cortiços, elevam-se alguns dos mais altos edifícios do mundo, com arrojada arquitetura pós-moderna.
Alguns restaurantes servem cobras fritas, tiradas vivas de um serpentário à vista do cliente. Nas feiras populares, roedores são exibidos junto de sapinhos. São "requintes" da culinária local. Metros adiante, o visitante verá cafés Starbucks, lojas do McDonald's, Pizza Hut e casas da rede americana de frango frito KFC. Os aeroportos estão todos cheios de chineses tomando Jumbos para viagens internas. Ao mesmo tempo, lojas de Hong Kong apresentam na vitrine os órgãos sexuais de veados, secos e delicadamente embalados em celofane. Não entendi como se usam pênis e testículos secos de veados, se raspados na comida ou em forma de chá. Mas é fácil perceber que são afrodisíacos muito apreciados.
A China é uma velha senhora, uma das mais antigas civilizações do mundo. Os primeiros objetos de cerâmica fabricados na região têm 5 000 anos. A linhagem inaugural de imperadores, da dinastia Zhou, antecede em 1 000 anos a fundação do cristianismo. A Cidade Proibida, o antigo palácio dos imperadores em Pequim, foi construída um século antes das viagens de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral. Depois de um longo sono, que começou no fim da Idade Média, a China vem despertando desde os anos 80.
Sou um veterano do Oriente. Estive três vezes no Japão, visitei a Índia, o Nepal, Cingapura, Taiwan. Nenhum desses países me impressionou tanto quanto a China, onde estive três vezes. Em 1991, conheci Hong Kong. Dez anos atrás, fui perambular durante um mês pelas metrópoles da franja do Pacífico, que concentram mais de 70% dos chineses. Ali estão instaladas centenas de Zonas Econômicas Especiais, onde se multiplicam multinacionais japonesas, europeias e americanas, algumas das quais visitei. Estive agora mais um mês na China e vi outro país, que não existia em 1995. Só sentirá o alcance real da máquina de crescimento chinesa quem puder comparar o panorama de hoje com o de épocas passadas.
A riqueza da China não é dessas de que a pessoa só toma conhecimento lendo estudos de economistas. Na China, a riqueza é um fenômeno físico, visível a olho nu, desde que o observador saiba o que estava ali antes. A China iniciou sua modernização em 1980, depois de trinta anos de aplicação de um estilo extremado de comunismo, que tinha chavões marxistas-leninistas de um lado e racionamento de gêneros alimentícios do outro. O trabalho físico era realizado com instrumentos medievais. As árvores eram consideradas simples combustível e os jardins, nada mais do que caprichos burgueses. O comunismo produziu um desastre econômico e ecológico na China. Hoje, Pequim é um jardim, com árvores novas espalhadas por todas as avenidas. As vias elevadas abrem-se em forma de pétalas. A cidade tem dez hotéis cinco-estrelas, do melhor gabarito internacional, equipados com restaurantes luxuosos e culinária impecável do Ocidente. Está construindo mais doze cinco-estrelas para as Olimpíadas de 2008. As calçadas são amplas como as dos Champs-Élysées, em Paris. E tão limpas como as de Tóquio. Nas periferias enfileiram-se conjuntos de prédios de quarenta, cinquenta andares com apartamentos pequenos para a massa trabalhadora. Na rua, as pessoas se vestem com roupas mais simples do que na Europa, mas já são trajes modernos e, grande novidade, coloridos.
Veja agora a Pequim de 1980, com base na descrição do jornalista italiano Fernando Mezzetti, que estava por lá como correspondente de imprensa e escreveu um livro, De Mao a Deng, sobre sua experiência. A capital era uma aldeia de gente camponesa. Todos escarravam no chão. Não se viam saias nem vestidos, todos usavam túnicas Mao, cinzentas. O único prédio alto da cidade era o hotel estatal Pequim, de dezessete andares. Havia feios edifícios baixos para as repartições públicas. O resto, quase a totalidade da capital, era composto de hutongs, vielas com casas escuras de um andar, quartos sem janelas e enormes privadas coletivas que não eram servidas por esgoto. Uma ou duas vezes por semana, passava um caminhão da prefeitura para recolher as fezes, que iam virar adubo nas fazendas coletivas. Visitei uma dessas instalações sanitárias em 1991, na área de Hong Kong. Constava de uma bacia de cerâmica com a circunferência de uma banheira de hidromassagem. Umas 100 ou 200 pessoas tinham passado por lá antes do recolhimento dos excrementos.
Nos lugares públicos não havia espelhos porque era considerado burguês cuidar da aparência. Os salões de cabeleireiro tinham sido fechados. Existiam cupons de racionamento e apenas 64 chuveiros públicos para 8 milhões de pessoas em Pequim. Ninguém tinha TV, rádio, telefone nem carro, a não ser funcionários do alto escalão do Partido Comunista Chinês. Abriu-se naquele ano o primeiro restaurante privado de Pequim. Um tonel cheio de brasas funcionava como fogão. Havia somente quatro mesas de cinco lugares para os clientes. O local tornou-se a sensação da capital e logo era preciso fazer reserva com antecedência de semanas. Naquela época, cada lojinha pertencia ao Estado. Hoje, Pequim tem restaurantes aos milhares, salões de beleza, boates, casas de jazz, teatros com concertos de rock, lojas de aparelhos eletrônicos.
Vamos ao maior shopping center de Pequim. Chama-se China World Shopping Mall. Tem lojas da Cartier, Prada, Zegna, Gucci, Hugo Boss, Fendi, Baccarat, Dior, Cerruti, Celine, Dunhill, Ferragamo, Montblanc, Lagerfeld, Paul&Shark, Armani, Givenchy, Moschino, Kenzo e mais cinquenta marcas de roupas e outras 200 lojas de jóias, artigos de couro, itens de beleza, livrarias e restaurantes. Nos três andares inferiores ao térreo dos grandes hotéis, há sempre uma Daslu com todas aquelas marcas famosas (e preços internacionais). Em Hong Kong, os shoppings enfileiram-se em tal quantidade no centro da ilha que é possível passar de um a outro por vias aéreas para pedestres, gastando-se horas e horas na visita, sem pisar na rua.
"Lolex, Lolex." Os vendedores de relógios falsificados estão por toda parte. O Rolex é a marca que anunciam para chamar a atenção dos estrangeiros, mas eles têm exemplares de todas as etiquetas famosas. À porta dos hotéis, vendem Rolex a 5 dólares. É uma falsificação grosseira, da mesma maneira que as bolsas "Luiton", ou Louis Vuitton. Mas há lojas muito bem instaladas com falsificações de primeira linha. Têm catálogos de relógios conhecidos a 50 dólares americanos o exemplar. Uma mala de viagem falsa Louis Vuitton, de acabamento impecável, custa 100 dólares. Uma bolsa da marca Gucci sai por 50 dólares e, à primeira vista, é tão bonita quanto a verdadeira, vendida nos shoppings chiques por 1 800 dólares.
Combina-se na China uma fórmula de abertura econômica com autoritarismo político. Hoje em dia, o regime só é comunista e igualitário na retórica, estimulando a instalação de um capitalismo extremado em certas áreas, com atenção especial para a atração de investimentos estrangeiros. As autoridades chamam esse modelo de "socialismo com características chinesas". Decidiu-se criar uma nova zona econômica especial num bairro cheio de casebres? Nenhum problema. Manda-se o aviso de despejo a todos os moradores do bairro e passam-se os tratores para limpar o terreno. Nas zonas especiais florescem indústrias de automóveis (o país abriga a terceira maior do mundo), fábricas de produtos eletrônicos (a China, com 350 milhões de assinantes, tem a maior quantidade de celulares no planeta), produtores de peças para o setor aeroespacial, computadores, têxteis, calçados. A China chegará, dentro de três anos, a ter 1,8 milhão de jovens financistas e contadores, com menos de sete anos de formados, empatando com os Estados Unidos, segundo cálculo do McKinsey Global Institute, publicado na semana passada pela revista americana BusinessWeek. Há 1,8 milhão de jovens engenheiros no país, contra apenas 600 000 nos EUA, e ambas as nações caminham para ostentar a mesma quantidade de cientistas da área biológica e afins daqui a três anos. Investe-se com volúpia na remessa de jovens talentos para doutorados no exterior. Além das redes públicas de ensino, foram abertas 1 300 universidades privadas a partir dos anos 90.
O homem que está por trás dessa revolucionária mudança no status econômico da China não é normalmente colocado no panteão dos grandes estadistas do século XX, onde deveria estar. Seu nome não é Mao Tsé-tung. Deng Xiaoping é o herói da modernização chinesa. Com pouco mais de 1,50 metro de altura, fumante até perto da morte, aos 92 anos de idade, em 1997, sem nenhum apreço visível por ideologias, mesmo repetindo os mantras socialistas, Deng nunca achou que um regime de liberdade política pudesse manter nos trilhos uma população de mais de 1 bilhão de habitantes. O pânico da anarquia social sempre acompanhou os dirigentes chineses, e Deng não foi exceção. No caso do antecessor Mao Tsé-tung, a repressão se destinava a impor a coletivização no campo e nas cidades, prender os que ousassem discordar do marxismo-leninismo e punir os intelectuais com trabalho braçal só porque eles eram um resquício da burguesia que o comunismo queria extirpar. Deng, ao contrário, pensava em usar o poder como uma barragem contra a sublevação social e a favor da modernização da economia.
Mao é venerado como o fundador da República Popular da China, um símbolo da coesão de uma nação com várias etnias e centenas de dialetos. Mas as lideranças chinesas já admitem há décadas que Mao também produziu desastres econômicos. Em certa época, ordenou que os chineses trocassem toda a sua agricultura de hortaliças, chá e frutas pelo plantio exclusivo de cereais. Mandou também que abandonassem outros afazeres em salas de aula, escritórios e fábricas para produzir aço em miniusinas de fundo de quintal. O objetivo desses projetos era "alcançar a Inglaterra em quinze anos". Mao também despachou os intelectuais, técnicos, cientistas e professores para um período forçado de reeducação nas fazendas coletivas, enquanto todas as escolas do país ficaram fechadas por uma década. Morreram de fome algo como 50, 60 milhões de pessoas nessas aventuras ideológicas do Grande Timoneiro. Hoje, com uma reserva de 700 bilhões de dólares, é a China que financia o gigantesco déficit público americano, comprando títulos dos Estados Unidos.
Mao Tsé-tung morreu em setembro de 1976 e Deng Xiaoping foi devagar limpando o terreno para a aplicação daquilo que era sua idéia de "revolução". A partir de 1980, anunciou reformas das instituições econômicas e políticas da China que levaram o país ao crescimento acelerado. Para as multinacionais que queiram instalar-se na China, o governo reduz os impostos, dá isenções, permite remessa total de lucros para o exterior. A carga tributária é baixa, os juros estão ali por 5% ao ano e a inflação em torno de 1%. As leis trabalhistas, nas zonas especiais, favorecem o empregador.
Apesar de todas as mudanças, a China continua com seu regime autoritário. Deng é o herói da modernização chinesa, mas nunca foi um vovô bonachão. Isso ele demonstrou ao mandar 200 000 homens do Exército encerrar a bala as manifestações populares por democracia que eclodiram em junho de 1989 em Pequim. Esse acontecimento, o massacre da Praça da Paz Celestial, não foi captado em todas as suas dimensões pelo Ocidente. É um divisor de águas na China por reforçar a ideia da modernização econômica dentro de um regime ditatorial.
Mikhail Gorbachev esteve em Pequim nesse período. Primeiro líder soviético a visitar a China em trinta anos, abrindo a chance de os dois países normalizarem suas relações diplomáticas, Gorbachev teve barrado seu deslocamento do aeroporto até a Praça da Paz Celestial, onde receberia homenagens. Pequim estava paralisada de lado a lado por 1 milhão de manifestantes, numa cidade de 12 milhões de habitantes. Gorbachev entrou na Assembleia do Povo por uma entrada de serviço lateral e não pôde visitar a Cidade Proibida, no outro lado da praça. A população levantou barricadas com ônibus incendiados, pneus e blocos de cimento, para dificultar o avanço das tropas. À meia-noite do dia 4 de junho, o Exército Vermelho atacou. Não se sabe quantas pessoas morreram. Centenas, talvez milhares. Deng reapareceu depois do massacre para dizer candidamente que, se houve algo errado, foi não se ter levado mais longe e mais rápido a política de abertura econômica. Na China, as coisas são assim. Deng nunca ocupou formalmente o posto de líder máximo. A partir de certa idade, renunciou aos cargos de terceiro escalão que tinha e foi para os bastidores. Continuou mandando. Suas duas frases mais citadas tratam de ideologia (contra) e de riqueza (a favor). Elas dão uma boa ideia do que era sua mente. Sobre ideologia: "Não importa se o gato é preto ou é branco, desde que cace ratos". Sobre a riqueza: "Ser rico é glorioso".
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