Movimentos Sociais e a Construção de um Novo Sujeito Histórico

Movimentos Sociais e a Construção de um Novo Sujeito Histórico

Movimentos Sociais e a Construção de um Novo Sujeito Histórico

Os protestos sistemáticos contra os centros de poder global multiplicam-se. Os Fóruns Sociais mundiais, continentais, nacionais e temáticos constituíram-se como lugares de convergência dos movimentos e organizações que estão lutando contra o neoliberalismo. Trata-se de esboçar um quadro geral de reflexão sobre o andamento destes eventos.

Por que um novo sujeito histórico?
A história da humanidade caracteriza-se por uma multiplicidade de sujeitos coletivos, portadores de valores de justiça, de igualdade, de direitos e protagonistas de protestos e lutas. Recordemos por exemplo, a revolta dos escravos, as resistências contra as invasões na África e Ásia, as lutas camponesas da Idade Média na Europa, as numerosas resistências dos povos nativos da América, os movimentos religiosos de protesto social no Brasil, Sudão e China.

Um salto histórico dá-se quando o capitalismo constrói, depois de quatro séculos de existência, as bases materiais de sua reprodução que são a divisão do trabalho e a industrialização. Nasce o proletariado como sujeito potencial, a partir da contradição entre capital e trabalho. Os trabalhadores estão submetidos ao capital dentro do próprio processo de produção fazendo com que a classe operária seja totalmente absorvida e igualmente constituída pelo capital. É o que Karl Marx chamou a subsunção real do trabalho pelo capital. A nova classe se transformou em sujeito histórico quando se construiu no próprio seio das lutas, passando do estatuto de “uma classe em si a uma classe para si”. Não era o único sujeito, mas sim, o sujeito histórico, isto é, o instrumento privilegiado da luta de emancipação da humanidade, em função do papel jogado pelo capitalismo. Este último não se situava somente no plano da economia, mas também orientava a configuração do Estado-nação, as conquistas coloniais, as guerras mundiais, sem falar de seu papel como veículo privilegiado da modernidade. Evidentemente a história da classe operária como sujeito histórico não foi linear. Houve a passagem de movimento para partido político e do plano nacional ao plano internacional, mas também êxitos e fracassos, vitórias e recuperações.

O capitalismo realiza um novo salto. O sujeito social amplifica-se. As novas tecnologias estendem a base material de sua reprodução: a informática e a comunicação, que lhe dão uma dimensão realmente global. O capital necessita uma acumulação acelerada para responder ao tamanho dos investimentos em tecnologias cada vez mais sofisticadas, para cobrir os gastos de uma concentração crescente e encontrar as exigências do capital financeiro que depois da flutuação do dólar em 1971 se transformou massivamente em capital especulativo. Por estas razões, o conjunto dos atores do sistema capitalista combateu tanto o keynesianismo e seus pactos sociais entre capital, trabalho e Estado, o desenvolvimento nacional do Sul (o modelo de Bandung, segundo Samir Amin) como o desenvolvimentismo cepalino (na América Latina) e os regimes socialistas. Começou a fase neoliberal do desenvolvimento do capitalismo chamada também o Consenso de Washington. Esta estratégia se traduziu em uma dupla ofensiva, contra o trabalho (diminuição do salário real, desregulação, deslocalização) e contra o Estado (privatizações). 

Assistimos também a uma busca de novas fronteiras de acumulação, frente às crises tanto do capital produtivo como do capital financeiro: a agricultura camponesa que deve ser convertida em uma agricultura produtivista capitalista, os serviços públicos que devem passar ao setor privado e a biodiversidade, como base de novas fontes de energia e de matéria prima. O resultado é que agora todos os grupos humanos sem exceção estão submetidos à lei do valor, não somente a classe operária assalariada (subsunção real), mas também os povos nativos, as mulheres, os setores informais, os pequenos camponeses, sob outros mecanismos, financeiros –preço das matérias primas ou dos produtos agrícolas, serviço da dívida externa, paraísos fiscais, etc. – ou jurídicos –as normas do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial (BM) e da Organização Mundial de Comércio (OMC)–, tudo isso significando uma subsunção formal.

Mais que nunca, o capitalismo destrói, como o notava Karl Marx há mais de um século e meio, as duas fontes de sua riqueza: a natureza e os seres humanos. Na verdade, a destruição ambiental afeta a todos e a lei do valor hoje inclui a todos. A mercantilização domina a quase totalidade das relações sociais, em campos cada vez mais numerosos como o da saúde, da educação, da cultura, do esporte ou da religião. Além disso, a lógica capitalista tem sua institucionalidade. Recordemos primeiro que se trata de uma lógica e não de um complô de alguns atores econômicos (senão bastaria convertê-los e corrigir abusos e excessos). Lembro-me de um empresário de Santo Domingo, testemunha do Jeová, que dizia a propósito de seus operários aos quais amava com um amor muito cristão: “chamo meus trabalhadores, magos, porque não sei como podem viver com o salário que lhes dou”. A mudança exige uma ação estrutural, hoje globalizada, de atores determinados com agendas precisas.

O capitalismo globalizado tem suas instituições: a OMC, o BM, o FMI, os bancos regionais e também seus aparelhos ideológicos: meios de comunicação social, cada vez mais concentrados em poucas mãos. Finalmente, goza do poder de um império, Estados Unidos. O dólar é a moeda internacional e a América do Norte detém o único direito de veto no Banco Mundial e no FMI, e um veto compartilhado no Conselho de Segurança. Este país conserva, além disso, quase um monopólio no campo militar, com mão sobre a OTAN e a capacidade de começar guerras preventivas. Quando se trata de intervir militarmente no Iraque ou Afeganistão para controlar as fontes de energia, o faz sem olhares. Suas bases militares multiplicam-se e estendem-se sobre o planeta e seu governo se auto-atribui a missão de reprimir as resistências no mundo inteiro, sem duvidar em utilizar a tortura e o terrorismo como mecanismos. Entretanto, o império tem suas debilidades. A natureza se está defendendo-se e hoje a oposição aintiimperialista é mundial. Imanuel Wallenstein em virtude das deficiências do sistema começou a pensar que aquilo que ele chama “o longo século XX”, dominado pelo capitalismo poderia encontrar seu fim na metade deste século.

Por todas estas razões, o novo sujeito histórico se estende ao conjunto dos grupos sociais submetidos, tanto aqueles que formam parte da submissão real (representados pelos chamados “antigos movimentos sociais”) como os que integrariam o grupo dos subsumidos formalmente (“novos movimentos sociais”). O novo sujeito histórico a ser construído será popular e plural, isto é, constituído por uma multiplicidade de atores e não pela “multidão” da qual falam Michael Hardt e Antonio Negri. Conceito este tão vago como perigoso por suas consequências desmobilizadoras. A classe operária terá um papel importante, mas compartilhado. Este sujeito será democrático, não somente por sua meta, mas também pelo próprio processo de sua construção. Ele será multipolar, nos diferentes continentes e nas diversas regiões do mundo. Tratar-se-á de um sujeito no sentido pleno da palavra, incluindo a subjetividade redescoberta, abrangendo todos os seres humanos, constituindo a humanidade como sujeito real que proclamado por Franz Hinkelammert em seu livro O Sujeito e a Lei. O novo sujeito histórico deve ser capaz de atuar sobre a realidade que por sua vez é múltipla e global, com o sentido de emergência exigido pelo genocídio e pelo ecocídio contemporâneos.

Os movimentos sociais
Os movimentos sociais são os frutos de contradições que se globalizaram. Segundo Alain Touraine (1999), para serem verdadeiros atores coletivos necessitam de certa inscrição na história, de uma visão da totalidade do campo dentro do qual se inscrevem, de uma definição clara do adversário e, finalmente, de uma organização. São mais que uma simples revolta (as jacqueries camponesas) mais que um grupo de interesses (câmara de comércio), mais que uma iniciativa com autonomia do Estado (ONGs). Os movimentos nascem da percepção de objetivos como metas de ação, mas para existirem no tempo necessitam um processo de institucionalização. Criam-se papéis indispensáveis para sua reprodução social. Assim nasce uma permanente dialética entre metas e organização cujo perigo potencial sempre presente é a possibilidade de que a lógica de reprodução imponha-se sobre as exigências dos objetivos procurados. 

Há um infinito número de exemplos desta dialética na história. Desta forma nasceu o cristianismo, como o diz o teólogo argentino Ruben Dri, como “o movimento de Jesus”, expressão religiosa de protesto social, perigosa para o império romano e reprimida por este último. Transformou-se por sua inserção na sociedade romana em uma instituição eclesiástica, seguindo o modelo da organização política, centralizada, vertical e frequentemente aliada com os poderes de opressão. O peso institucional não matou o espírito, mas introduziu uma contradição permanente. O Concílio Vaticano II constituiu um esforço de restabelecer o predomínio dos valores da mensagem evangélica sobre o caráter institucional, mas nos anos seguintes, ele foi bastante recuperado por uma corrente de restauração. Outro exemplo é o caso de muitos sindicatos operários e partidos de esquerda. Foram iniciativas dos trabalhadores em luta que com o tempo transformaram-se em burocracias que definiam suas tarefas em termos somente defensivos, quer dizer em função da agenda do adversário e não do projeto de transformação radical do sistema. No caso particular dos partidos políticos, é a lógica eleitoral que prepondera sobre o objetivo original e que define as práticas, o que significa uma lógica de reprodução e não uma perspectiva de mudança profunda revolucionária. Isso não impede a presença de muitos militantes autênticos nestas organizações, mas significa que estão encerrados em uma lógica que os ultrapassa. 

Entretanto, a realidade social não está predeterminada e pode-se atuar sobre os processos coletivos. Para que os movimentos sociais estejam em posição de construir o novo sujeito social há duas condições preliminares. Em primeiro lugar, ter a capacidade de uma crítica interna com o fim de institucionalizar as mudanças e assegurar uma referência permanente aos objetivos. Em segundo lugar, captar os desafios da globalização, que por sua vez são gerais e específicos ao campo de cada movimento: operário, camponês, de mulheres, populares, de povos nativos, de juventude, e em breve de todos os que são vítimas do neoliberalismo globalizado.

Concorrem também outras exigências. Os movimentos sociais que se definem como a sociedade civil têm que precisar que se trata da sociedade civil de abaixo, recuperando assim o conceito do Antonio Gramsci que a considera como o lugar das lutas sociais. Isso permite evitar cair na armadilha da ofensiva semântica dos grupos dominantes, como o Banco Mundial, para os quais ampliar o espaço da sociedade civil significa restringir o lugar do Estado, ou também na ingenuidade de muitas ONGs para as quais a sociedade civil é o conjunto de todos os que querem o bem da humanidade. No plano global, a sociedade civil de cima se reúne em Davos e a sociedade civil de baixo em Porto Alegre.

Construir o novo sujeito histórico requer conceber e cimentar um vínculo com um campo político renovado. Nos primeiros tempos dos Fóruns Sociais existia um medo real para com os órgãos da política tradicional em parte por razões justas. Ao repúdio frente à instrumentalização eleitoreira e às maquinarias de partidos como mera ferramenta de poder somava-se uma atitude de princípio anti-estatal, especialmente em certas ONGs. Daí, o êxito das teses do John Holloway que se perguntava como mudar o mundo sem tomar o poder. Se se tratar de afirmar que a transformação social exige muito mais que a tomada do poder político formal, executivo ou legislativo, esta perspectiva é plenamente aceitável, mas se significar que mudanças fundamentais como uma reforma agrária ou uma campanha de alfabetização podem ser realizadas sem o exercício do poder, é uma total ilusão.

Assim, os movimentos sociais devem contribuir para a renovação do campo político, como o indica muito bem Isabel Rauber em seu livro Sujeitos políticos. A perda de credibilidade dos partidos políticos é uma realidade mundial e é urgente encontrar a maneira de realizar uma reconstrução do campo. Um exemplo interessante é o da República Democrática do Congo (Kinshasa), onde os movimentos e organizações de base mobilizaram-se para a organização das eleições de julho 2006. Depois de 40 anos de ditadura e de guerras (nos últimos cinco anos houve mais de três milhões de vítimas), as forças populares da base da população afirmaram a necessidade de defender a integridade da nação e salvaram esta última de seu desmantelamento neutralizando todos os esforços feitos para fragmentar o país e assim poder controlar mais facilmente os recursos naturais. Adicionalmente, estes setores estão inventando formas de democracia participativa, conjuntamente com a democracia representativa. Milhares de organizações locais, de mulheres, de camponeses, de pequenos comerciantes, de jovens, de comunidades cristãs católicas e protestantes, mobilizaram-se para apresentar candidatos, ligados por pacto às comunidades (porta-vozes e não representantes como diz a lei de conselhos comunais da Venezuela), no nível local e estadual, com alguns em nível nacional, mas sem candidato à presidência, porque estimam que primeiro devem consolidar o processo de baixo. É uma verdadeira reconstrução de um campo político, quase completamente destruído pelas práticas (corrupção e tribalismo) dos partidos existentes.

Finalmente, será muito importante para as convergências dos movimentos sociais encontrarem a maneira de aglutinar as numerosas iniciativas populares locais que não se transformam em movimentos organizados, apesar do fato de que representam uma parte importante das resistências (em nível de povos ou de regiões, contra uma represa, contra a privatização da água, da eletricidade, da saúde, contra a entrega de florestas a empresas transnacionais, etc.). Existem exemplos como o MONLAR, no Sri Lanka, a organização que luta pela reforma agrária e que reagrupa mais de 100 iniciativas locais além de ser um movimento camponês nacional, conseguiu acumular forças capazes de atuar no nível do país, como órgão de protesto (manifestações nacionais) e também de diálogo e de confrontação com o Governo e com o Banco Mundial.

Como construir o novo sujeito histórico
Produzir um novo sujeito histórico requer algumas condições básicas. Em primeiro lugar, é necessário elaborar uma consciência coletiva sustentada em uma análise apropriada da realidade e uma ética. Quanto à análise, trata-se de utilizar instrumentos capazes de estudar os mecanismos de funcionamento da sociedade e de entender suas lógicas, com critérios que permitam distinguir causas e efeitos, discursos e práticas. Não se trata de qualquer tipo de análise, mas sim daquela produzida com o aparelho teórico crítico mais adequado para responder ao grito dos de baixo. Exige um alto rigor metodológico e uma abertura a todas as hipóteses úteis para este fim. A opção em favor dos oprimidos é um passo pré-científico e ideológico, que vai guiar a eleição do tipo de análise, entretanto este último pertence à ordem científica sem concessão possível. É um saber novo que ajudará a criar a consciência coletiva.

Tomemos um exemplo contemporâneo para dar conta da que nos referimos quando fazemos ênfase sobre a análise da realidade. Fala-se muito dos objetivos do Milênio, decididos pelos chefes de Estado em Nova Iorque no ano 2000. Quem poderia estar contra a eliminação da pobreza e da miséria (pobreza absoluta) e em favor do desenvolvimento? Por isso houve unanimidade. O objetivo para o ano 2015 é apenas reduzir à metade a extrema pobreza, o que significa que neste ano o mundo ainda se encontrará com mais de 800 milhões de pobres (já uma vergonha). Tudo parece indicar que o cumprimento destas metas é improvável. Isso se deve ao fato de que não se criticou a lógica fundamental do tipo de desenvolvimento que favorece aos 20% da população dos países do Sul. Esta minoria cresce de maneira espetacular, formando uma base de consumo apreciável para o capital e acentuando a visibilidade de uma certa riqueza. Ao mesmo tempo, as distâncias sociais aumentam progressivamente. Entender esta contradição requer questionar o próprio conceito de desenvolvimento do qual dependem os critérios adotados para definir os objetivos do Milênio. Não entram em sua definição elementos qualitativos como o bem-estar, a igualdade, a soberania alimentar e outros mais. É por isso que Marta Harnecker no Centro Miranda de Caracas, trabalha para a criação de ferramentas analíticas para medir os critérios do desenvolvimento. De fato, os conceitos utilizados pelas Nações Unidas são os do mercado e não os da vida dos seres humanos.

O segundo elemento que contribui para a construção de uma consciência coletiva é a ética. Não se trata de uma série de normas elaboradas em abstrato, mas sim de uma construção constante pelo conjunto dos atores sociais em referência à dignidade humana e ao bem de todos. As definições concretas podem trocar segundo os lugares e as épocas e quando se trata da realidade globalizada, a perspectiva ética terá que ser elaborada pelo conjunto das tradições culturais: isto é, o conceito real dos direitos humanos. A ética neste sentido não é uma imposição dogmática, mas sim uma obra coletiva que tem suas referências na defesa da humanidade. Podemos dizer que o lucro principal dos Fóruns Sociais, como convergências de movimentos e de organizações populares, foi a elaboração progressiva de uma consciência coletiva, com vários níveis de análise e de compreensão e com uma ética de protesto contra todo tipo de injustiça e desigualdade, e de construção social democrática de “um outro mundo possível”. A existência dos Fóruns é em si mesmo um fato político, além dos muitos outros lucros, como a constituição de redes, o intercâmbio de alternativas, o funcionamento em seu seio da Assembleia dos movimentos sociais e a contribuição de intelectuais comprometidos.

Logo após ter elaborado uma consciência coletiva se impõe como passo seguinte convocar à mobilização dos atores plurais, populares, democráticos e multipolares. Aqui nos encontramos com o aspecto subjetivo da ação. Os atores humanos são seres completos e não atuam somente em função da racionalidade das lógicas sociais. O compromisso é um ato social caracterizado por um elemento afetivo forte e ainda central. Daí, a importância da cultura como conjunto das representações da realidade e também dos inumeráveis canais de sua difusão: a arte, a música, o teatro, a poesia, a literatura, a dança. A cultura é uma meta, mas também um meio de emancipação humana. O mesmo se pode dizer do papel potencial das religiões, nas quais se encontram referências humanas existenciais fundamentais: a vida, a morte, em relação a uma fé que se pode compartilhar ou não, mas que não se pode ignorar. Isso foi um engano grave de um certo tipo de socialismo. O potencial religioso libertador é real. Além disso, as religiões podem contribuir com espiritualidade e ética coletiva e pessoal indispensáveis para a reconstrução social.

Um terceiro elemento está constituído pelas estratégias para obter os três níveis de alternativas. O primeiro é a utopia, no sentido do que não existe hoje, mas que pode ser realidade amanhã, quer dizer uma utopia não ilusória, e sim necessária como dizia o filósofo francês Paul Ricoeur. Que tipo de sociedade queremos? Como definir o pós-capitalismo ou o socialismo? A utopia também é uma construção coletiva e permanente, não uma coisa que vem do céu. Necessita para seu cumprimento uma ação de longo prazo: a mudança de um modo de produção não se faz com uma revolução política, mesmo que ela possa significar o início de um processo. O capitalismo levou quatro séculos para construir as bases materiais de sua reprodução: a divisão do trabalho e a industrialização. As mudanças culturais que são partes essenciais do processo têm um ritmo diferente das transformações políticas e econômicas.

Os outros dois níveis, o meio e o curto prazo, dependem das conjunturas, mas devem ser o objeto de estratégias acordadas e realizadas em convergência, entre atores sociais diversos. São o lugar das alianças. Entretanto, não é a simples soma de alternativas nos setores econômicos, sociais, culturais, ecológicos e políticos que permitirá um novo sujeito histórico sair adiante. Necessita-se coerência. Esta última também será obra coletiva e não o resultado de um monopólio do saber e do conhecimento por uma vanguarda depositária da verdade. Será um processo constante e não um dogma.

A partir deste ponto de vista é importante sublinhar o caráter indispensável de alguns atos coletivos estratégicos, ainda parciais, mas que reagrupam um conjunto de atores sociais diversos em uma iniciativa significante em relação com a dimensão utópica do projeto global. Felizmente existem vários exemplos neste sentido, dos quais recordamos dois. 

A campanha contra o ALCA reuniu muitos movimentos sociais, dos sindicatos aos camponeses, passando pelas mulheres e pelos indígenas. ONGs de diversas procedências somaram-se inclusive a esta iniciativa. Em alguns países, instituições religiosas tomaram posição contra o tratado. Utilizaram-se métodos muito variados de ação, até preferendos populares que recolheram milhões de assinaturas. Outro exemplo é o plano alternativo popular de reconstrução depois do tsunami no Sri Lanka. O plano oficial administrado pelo Banco Mundial previa essencialmente o desenvolvimento do turismo internacional e não respondia às necessidades de base da maioria da população. Era a maneira de acelerar a política neoliberal de alcance mundial. Por isso se constituiu uma aliança ampla de movimentos e organizações sociais, inclusive instituições budistas e cristãs, para opor-se ao plano governamental e propor soluções alternativas.

Duas iniciativas complementares fizeram sua contribuição frente à necessidade de uma perspectiva de ação em nível mundial: a rede “Em Defesa da Humanidade”, fundada no México sob o impulso de Pablo González Casanova e que tem capítulos de vários países, especialmente latino-americanos e o “Chamamento do Bamako” promovido pelo Fórum Mundial de Alternativas (iniciado na Lovaina-a-Nova em 1996 por ocasião do 20° aniversário do Centro Tricontinental e fundado oficialmente no Cairo no ano seguinte), o Fórum do Terceiro Mundo (Dakar), Enda (uma ONG africana) e o Fórum Social do Malí. Em Defesa da Humanidade propôs a constituição de uma promotora destinada a reunir e propor ações comuns e o “Chamamento de Bamako” definiu 10 áreas para pensar e propor atores coletivos e estratégias, inspirando-se em grande parte do Manifesto de Porto Alegre elaborado por um grupo de intelectuais durante o Fórum Social Mundial de 2005. Estas duas iniciativas complementam o trabalho da Assembleia de Movimentos que dentro de cada Fórum elabora um documento e propõe campanhas (como a manifestação contra a guerra no Iraque, que em 2003, reuniu mais de 15 milhões de pessoas em 600 cidades do mundo).

Finalmente a partir de um panorama geral são necessárias algumas vitórias, embora parciais, significativas. Manter a ação, recrear a motivação, exige resultados. Não se trata de qualquer conquista, mas sim das que mobilizaram vários atores sociais em uma ação comum, sobre objetivos relacionados a uma visão de conjunto e de dimensão global. Há também neste aspecto vários exemplos importantes. De novo se pode citar a campanha latino-americana contra o ALCA. Na Europa, o NÃO ao tratado constitucional elaborado em uma orientação neoliberal e com uma submissão aos Estados Unidos no campo militar, é outro exemplo. O rechaço com êxito do contrato de primeiro emprego na França e o abandono da base naval norte-americana de Vieques em Porto Rico, depois de uma longa mobilização popular são outros casos notórios. E no âmbito político, a eleição do primeiro presidente indígena na Bolívia tem também um sentido muito amplo de vitória nos planos culturais, sociais e econômicos.

À guisa de conclusão, podemos dizer que já está traçado o caminho para passar da elaboração de uma consciência coletiva à construção de atores coletivos e que todos estes fatos o anunciam como próximo propósito a cumprir.

François Houtart*

Os movimentos sociais e a construção de um novo sujeito histórico

*Sociólogo e Diretor do Centro Tricontinental, Lovaina-a-Nova, Bélgica e membro do Fórum Mundial das Alternativas.
Tradução de Simone Rezende da Silva

Bibliografia
Dri, Rubén 1996 Autoritarismo y democracia en la Biblia y en la Iglesia (Buenos Aires: Biblos).

Gramsci, Antonio 1999 Cuadernos de la cárcel (México: Ediciones Era/Benemérita Universidade Autônoma de Puebla).

Hardt, Michael e Antonio Negri 2002 Imperio (Buenos Aires: Paidós). 

Hinkelammert, Franz 2003 El Sujeto y la Ley. El retorno del Sujeto reprimido (Costa Rica: EUNA).

Holloway, John 2002 Cómo cambiar el mundo sin tomar el poder (Buenos Aires: Herramienta).

Rauber, Isabel 2005 Sujetos Políticos: rumbos estratégicos y tareas actuales de los movimientos sociales y políticos en América Latina (Costa Rica: Ruth Casa Editorial-DEI).

Touraine, Alan 1999 ¿Cómo salir del liberalismo? (México: Editorial Paidos).

www.megatimes.com.br
www.geografiatotal.com.br

www.klimanaturali.org
Postagem Anterior Próxima Postagem